Entre Amigos (Portugal/Holanda)
Um texto muito interessante do portugues Fernando Venancio, professor na Universidade de Amesterdao.
Entre amigos
Há pessoas por quem, antes mesmo de sermos apresentados, já sentimos afecto. De igual forma, pode estabelecer-se entre dois povos um fluido de real simpatia. É decerto o caso de portugueses e holandeses.
Uma pessoa poderá, sem grande esforço, enumerar as afinidades que ligam as duas nações. Os territórios, relativamente pequenos. As culturas, vivas mas crescidas à sombra de uma maior. O passado, de aventureiros do alto mar. Os povos, eles próprios, de poucas pretensões e trabalhadores. Será isso o suficiente para explicar o à-vontade que um holandês e um português experimentam ao primeiro contacto? Certezas não há, mas as coisas podem andar por aí.
Sempre, portugueses e holandeses, nos observámos, nos estudámos. Com distância, com admiração, com condescendência, com curiosidade. No século dezanove, Ramalho Ortigão veio aqui em autêntica viagem de estudo, percorreu o país de caderninho na mão, e escreveu A Holanda como quem deseja ensinar aos compatriotas a ser «país». Um país moderno, mas conservador. Um país ordeiro, mas a vender vitalidade.
No século vinte, a auscultação prosseguiu, alargou-se. Vários viajantes sondaram o país alheio, e contaram o que aí viram. Alguns fixaram-se mesmo nele. O poeta Slauerhoff, médico embarcadiço, andou por Portugal e decantou-o em poemas, dos mais célebres da literatura dos Países-Baixos. O diplomata Terborgh publicou as fortes impressões que Portugal lhe ofereceu, e aí ficou até ao fim da vida.
Hoje, são exemplos de observação crítica e lúcida J. Rentes de Carvalho, autor de Com os holandeses, retrato muito pouco meigo da sociedade holandesa, o que não impediu o livro de em língua neerlandesa multiplicar edições, e Gerrit Komrij, que na novela Um almoço de negócios em Sintra traçou uma imagem, também ela, impiedosa dos nossos costumes, e com algum êxito editorial. Entre amigos, a frontalidade é sempre compensada.
Os nossos contactos foram, cedo, razoavelmente intensos. Hoje parecerá incrível, mas ainda em 1985 as trocas comerciais entre Portugal e a Holanda eram superiores às que Portugal mantinha com a Espanha. De resto, o interesse dos holandeses pela democracia portuguesa tornou-se sensível a diversos níveis, desde o empenhamento do governo holandês na consolidação da liberdade, até aos largos investimentos de capitais de particulares, até às dezenas de jovens holandeses que foram dar à 'jovem democracia' um apoio desinteressado, concreto e sincero.
Outros contactos foram, ou são, particularmente sensíveis. Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, vários aviões da KLM transportaram, destinadas às ruas de Portugal, toneladas de cravos vermelhos. Era negócio, sim, mas um negócio que, por uma vez ímpar, foi transformar-se em poesia.
Nos dias de hoje, os milhares de pessoas que, diariamente, pisam o belíssimo calcetado do Dam, em Amsterdão, caminham, sem atenderem nisso, mas em boa verdade, sobre a rija pedra das montanhas portuguesas.
É isso: dois velhos amigos é assim que se tratam.
Entre amigos
Há pessoas por quem, antes mesmo de sermos apresentados, já sentimos afecto. De igual forma, pode estabelecer-se entre dois povos um fluido de real simpatia. É decerto o caso de portugueses e holandeses.
Uma pessoa poderá, sem grande esforço, enumerar as afinidades que ligam as duas nações. Os territórios, relativamente pequenos. As culturas, vivas mas crescidas à sombra de uma maior. O passado, de aventureiros do alto mar. Os povos, eles próprios, de poucas pretensões e trabalhadores. Será isso o suficiente para explicar o à-vontade que um holandês e um português experimentam ao primeiro contacto? Certezas não há, mas as coisas podem andar por aí.
Sempre, portugueses e holandeses, nos observámos, nos estudámos. Com distância, com admiração, com condescendência, com curiosidade. No século dezanove, Ramalho Ortigão veio aqui em autêntica viagem de estudo, percorreu o país de caderninho na mão, e escreveu A Holanda como quem deseja ensinar aos compatriotas a ser «país». Um país moderno, mas conservador. Um país ordeiro, mas a vender vitalidade.
No século vinte, a auscultação prosseguiu, alargou-se. Vários viajantes sondaram o país alheio, e contaram o que aí viram. Alguns fixaram-se mesmo nele. O poeta Slauerhoff, médico embarcadiço, andou por Portugal e decantou-o em poemas, dos mais célebres da literatura dos Países-Baixos. O diplomata Terborgh publicou as fortes impressões que Portugal lhe ofereceu, e aí ficou até ao fim da vida.
Hoje, são exemplos de observação crítica e lúcida J. Rentes de Carvalho, autor de Com os holandeses, retrato muito pouco meigo da sociedade holandesa, o que não impediu o livro de em língua neerlandesa multiplicar edições, e Gerrit Komrij, que na novela Um almoço de negócios em Sintra traçou uma imagem, também ela, impiedosa dos nossos costumes, e com algum êxito editorial. Entre amigos, a frontalidade é sempre compensada.
Os nossos contactos foram, cedo, razoavelmente intensos. Hoje parecerá incrível, mas ainda em 1985 as trocas comerciais entre Portugal e a Holanda eram superiores às que Portugal mantinha com a Espanha. De resto, o interesse dos holandeses pela democracia portuguesa tornou-se sensível a diversos níveis, desde o empenhamento do governo holandês na consolidação da liberdade, até aos largos investimentos de capitais de particulares, até às dezenas de jovens holandeses que foram dar à 'jovem democracia' um apoio desinteressado, concreto e sincero.
Outros contactos foram, ou são, particularmente sensíveis. Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, vários aviões da KLM transportaram, destinadas às ruas de Portugal, toneladas de cravos vermelhos. Era negócio, sim, mas um negócio que, por uma vez ímpar, foi transformar-se em poesia.
Nos dias de hoje, os milhares de pessoas que, diariamente, pisam o belíssimo calcetado do Dam, em Amsterdão, caminham, sem atenderem nisso, mas em boa verdade, sobre a rija pedra das montanhas portuguesas.
É isso: dois velhos amigos é assim que se tratam.