De socas nos pés

Dos Países Baixos para o mundo...


Estas são daquelas notícias a que não ficamos indiferentes. Mesmo quando não conhecemos a pessoa em causa, parece que nos toca, que nos diz algo sobre o pouco valor que a vida tem.

Ainda por cima esta geração de jornalistas que está a desaparecer prematuramente, depressa demais, todos com idades na casa dos cinquenta. Uma geração que relatou acontecimentos como o 25 de Abril, a Guerra Colonial, que passou pela censura, e que dactilografava as suas peças nas máquinas de escrever barulhentas num português que, actualmente, poucos conseguem usar.

Cáceres Monteiro – com quem nunca troquei uma palavra sequer – era um desses jornalistas – daqueles que fizeram o semanário O Jornal, que mais tarde deu lugar à Visão -, que me fazem recordar outros que já não estão entre nós, e que nos fazem falta. Muita falta.
fg
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domingo, 08 janeiro, 2006

O CÁCERES

Um pequeno grupo de três amigos comemorou a noite inteira, no longínquo ano
de 1967, de sol a sol, já não sei bem o quê. Um era eu, outro, o João Serra,
hoje chefe da Casa Civil do Presidente, e o terceiro, o Cáceres Monteiro.
Sei que começámos junto do Campo Grande, passámos para o Aeroporto, um dos
raros sítios abertos na noite lisboeta, depois para a Rotunda do Relógio, e
terminámos uma noite tipicamente estudantil de boémia, junto da Igreja da
Avenida com o mesmo nome. Pelo menos, eu e o João Serra não éramos
lisboetas, e por isso a vinda para a universidade e para a grande cidade
tinha todas as novidades, e muitas oportunidades. O trajecto deve ter sido
este, a pé, conversando muito, com aquela vontade de fazer e dizer
tumultuosa de quem tem tudo à frente e pouco atrás.

Se não me lembro o que comemorávamos, provavelmente a mera existência,
recordo-me muito bem do contexto em que o fazíamos. Éramos os três “novos
estudantes” de Direito, o nome que nos dávamos para não tresandar à praxe
associada com a designação de “caloiros”, e vínhamos de um jantar destinado
a “integrar” os estudantes do 1º ano na Associação de Estudantes. Existe um
panfleto a stencil com o apelo que os “novos estudantes” associativos faziam
aos seus colegas para virem para a Associação, com os nossos nomes, meu, do
João e do Carlos.

Ser “associativo” nesse ano, ano de charneira que marcou o fim do refluxo
das lutas estudantis, em vésperas do annus mirabilis de 1968, era ser do
“contra”, começar a deixar rasto na PIDE, que coleccionava estes
abaixo-assinados. Nenhum de nós, e de muitos outros, hesitou um segundo que
fosse. Essa era a nossa obrigação, e a ideia de que nesse acto havia uma
opção, uma escolha, uma alternativa era-nos alheia. Era assim, porque tinha
que ser assim. Nenhum de nós media consequências, embora soubesse que
existiam. O mundo era simples, então.

Cada um dos três permaneceu fiel a tudo o que disse nessa noite. Não fez, ou
não conseguiu fazer, tudo o que pensava, mas o primeiro a partir, o Cáceres,
foi certamente inteiro e juvenil como estava nessa noite longínqua. Nessa
noite, tenho quase a certeza que entre as pequenas malfeitorias que fizemos,
mudámos as horas do relógio da Rotunda que, na melhor tradição nacional
ficou meses desacertado. Não sei se o adiantamos ou atrasamos, só sei que
para nós ficou sempre um pouco fora de horas, num gesto de subversão, de
desordem, que tinha todo o sentido porque, mais do que o relógio, era o país
que queríamos desacertar. A 25 de Abril ele acertou-se, e o Cáceres fez
parte daqueles que o ajudou a acertar. Antes, durante e depois, até
anteontem.

texto de Pacheco Pereira, publicado na Sábado de 6-1-2006    

Posted by Anonymous Anónimo

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